Aumento dos pedidos de recuperação judicial reforça a necessidade de discutir financiamento, segurança jurídica e medidas para garantir a continuidade da produção rural
O crescimento expressivo de pedidos de recuperação judicial por produtores rurais reacendeu um debate jurídico e econômico relevante no país. Com mais de 800 produtores em processo de reorganização e bilhões em créditos não pagos, questões sobre acesso ao crédito, políticas públicas e proteção da atividade agrícola voltaram ao centro das discussões.
A recuperação judicial, prevista na Lei 11.101/2005 e ampliada em 2020 para abarcar expressamente o produtor rural, corrigiu uma lacuna histórica ao permitir que esse agente econômico também pudesse se reorganizar em momentos de crise. Para ter acesso ao instituto, basta comprovar o exercício da atividade rural há pelo menos dois anos, mesmo sem registro formal como empresário.
O objetivo é assegurar a continuidade da produção e preservar a função social da propriedade rural, sem tratar a medida como privilégio ou ato de má-fé. Trata-se de instrumento constitucional voltado à proteção da atividade econômica e da manutenção de empregos, nos termos do artigo 170 da Constituição.
A discussão que agora ganha força envolve a política de crédito destinada ao setor. Instituições financeiras, especialmente aquelas que operam com recursos públicos e têm papel central no financiamento agrícola, passaram a adotar práticas mais rígidas de avaliação e de concessão de crédito para produtores em recuperação judicial. Entre elas estão a redução de prazos para renegociação, exigência de garantias adicionais e maior seletividade no perfil de risco.
Sob a perspectiva gerencial, essa postura busca evitar que o processo de recuperação seja utilizado como estratégia para postergar obrigações. No entanto, quando as medidas adotadas geram efeitos de intimidação ou criam a percepção de que o produtor em recuperação judicial será permanentemente excluído do crédito rural, surge preocupação quanto à compatibilidade dessas condutas com o ordenamento jurídico.
A generalização do veto ao crédito pode afetar princípios como a boa-fé objetiva e a função social do contrato previstos no Código Civil. A recuperação judicial, por natureza, busca restabelecer o equilíbrio financeiro do devedor e permitir a continuidade da atividade produtiva. Impedir o acesso a instrumentos de financiamento indispensáveis ao setor pode frustrar a finalidade legal do próprio instituto.
Esse cenário se torna ainda mais delicado diante do perfil dos atuais inadimplentes. Estimativas apontam que grande parte dos produtores que recorreram à recuperação judicial nunca havia enfrentado inadimplência anteriormente. O aumento dos custos de produção, eventos climáticos extremos e oscilações de mercado criaram um ambiente de forte pressão financeira no campo.
O resultado é um dilema complexo. De um lado, o produtor precisa de reorganização para evitar a perda total do patrimônio. De outro, enfrenta insegurança quanto ao acesso futuro ao crédito, elemento essencial para custeio e continuidade da atividade agrícola.
A adoção de políticas restritivas de forma ampla e permanente pode gerar efeitos sistêmicos como retração do crédito, aumento de falências, insegurança jurídica e impactos sociais significativos em um setor que representa parcela expressiva do PIB nacional.
Do ponto de vista jurídico regulatório, a questão também envolve princípios constitucionais relacionados à política agrícola, ao desenvolvimento regional equilibrado e à finalidade pública dos agentes que operam com recursos estatais. A avaliação de risco é legítima, mas não pode ser confundida com punição institucionalizada, especialmente em um contexto no qual a recuperação judicial é um direito previsto em lei.
O desafio está em encontrar equilíbrio entre a necessária gestão de riscos das instituições financeiras e o direito legal do produtor rural à reorganização. A estabilidade do setor depende de práticas compatíveis com a função social do crédito rural e com o papel que o Estado desempenha no fomento à agricultura.
Em um ambiente marcado por variáveis climáticas, econômicas e estruturais, a recuperação judicial não deve ser tratada como ameaça, mas como instrumento capaz de promover sustentabilidade produtiva e segurança jurídica. Uma política de crédito que fortaleça esse ciclo contribui para um campo mais resiliente e alinhado aos princípios do Estado Democrático de Direito.
Por Gabriel Soares Messias, advogado associado da Fraz Advocacia, Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos (UFT/ESMAT). Especialista em Direito Empresarial e em Direito Público. Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins. Professor de Direito Civil e Empresarial da Universidade Federal do Tocantins – UFT/ Campus Arraias.


















