Declarações feitas pelo diretor financeiro global da gigante francesa de laticínios Danone, Jurgen Esser, enfureceram o setor agropecuário brasileiro. Esser afirmou à agência Reuters que a multinacional já não compra mais soja do Brasil, insinuando que o produto não é sustentável.
“Temos um rastreamento muito efetivo e podemos assegurar que só utilizamos ingredientes sustentáveis em nossos processos. Não compramos (mais soja do Brasil)”, disse o executivo da Danone, antecipando-se à implantação do Regulamento Antidesmatamento da União Europeia (EUDR).
As afirmações repercutiram rapidamente nas redes sociais, com consumidores pregando um boicote aos produtos da companhia nos supermercados. A Associação dos Produtores de Soja do Brasil (Aprosoja Brasil) classificou o posicionamento do executivo da Danone como “um ato discriminatório contra o Brasil e sua soberania”. O Ministério da Agricultura também se manifestou, rechaçando “posturas intempestivas e descabidas” anunciadas por empresas europeias que têm forte presença no mercado brasileiro.
Exigências do EUDR teriam pautado a Danone
A polêmica provocada pelo executivo da Danone vem na esteira do provável adiamento do EUDR, por um ano, a pedido das próprias autoridades de Bruxelas, por temor de disrupção nas cadeias de fornecedores. O regulamento prevê uma série de auditorias e certificações para comprovar que produtos das cadeias de soja, carne, borracha, café, madeira, cacau e óleo de palma não sejam provenientes de áreas desmatadas após 2020, independentemente de a conversão do uso da terra ter sido legal ou ilegal.
Apesar de terem mais tempo para se adequarem ao EUDR, gigantes do setor alimentício, como Nestlé e Unilever, estão adotando procedimentos que assegurem o atendimento às futuras exigências, evitando o risco de serem multados em até 4% do faturamento anual.
Mas ainda nenhuma empresa tinha se posicionado como a Danone, praticamente banindo a soja brasileira em sua cadeia europeia. Esser afirmou que a Danone está “absolutamente” importando a matéria-prima para rações em fornecedores da Ásia, mas não especificou de que países. Disse apenas que essa logística permite à companhia ficar menos exposta ao desmatamento do que seus rivais.
Ásia não tem soja para substituir o Brasil
Na safra 2023/24, a mais recente consolidada, a Ásia produziu 34 milhões de toneladas de soja, ou 9% da produção mundial. O Brasil, por sua vez, produziu 153 milhões de toneladas, ou 39% do total, segundo dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA).
Daniele Siqueira, analista da AgRural, observa que 95% da soja produzida na Ásia é cultivada na China e na Índia. E que os grãos são usados internamente, com exceção da Índia, que ainda exporta pequenos volumes de farelo de soja. “Imagino que a demanda por soja da Danone da Europa seja pequena. Por isso ela consegue deixar de comprar do Brasil. Mas não parece viável que empresas com demanda maior façam o mesmo movimento”, sublinha Daniele.
Para a Aprosoja Brasil, as afirmações do CFO da Danone, que também é vice-presidente mundial da companhia, demonstram “desconhecimento do processo produtivo no Brasil e um ato discriminatório” contra o país e sua soberania.
Aprosoja: Brasil já atinge desmatamento líquido zero há muito tempo
“Nota-se que a ação da Danone está pautada na coerção da lei pela previsão de multa na hipótese de descumprimento da legislação que ainda nem entrou em vigor”, diz a Aprosoja. Ao atacar a reputação da soja brasileira, sem provas, o posicionamento da Danone teria criado um ambiente de prejuízo real a toda a cadeia produtiva.
“No que se refere ao desconhecimento da Danone e de outras empresas estrangeiras em relação à sustentabilidade brasileira, o Brasil, na realidade, já está atingindo a linha de desmatamento líquido zero há bastante tempo. Embora exista desmatamento, também há muita regeneração da vegetação natural. Portanto, a afirmação de que o Brasil lidera a destruição de floresta tropical no mundo é fala de quem desconhece a dinâmica das florestas no Brasil. Pior ainda, está discriminando o único produtor de soja no mundo que preserva o meio ambiente e os recursos hídricos dentro das suas propriedades”, assegura a Aprosoja.
No ano passado, a Europa comprou 7,5 milhões de toneladas de soja do Brasil, o que corresponde a 45% da necessidade total, de 17 milhões de toneladas. O ex-ministro da Agricultura Antônio Cabrera aponta que os verdadeiros vilões da sustentabilidade são os subsídios agrícolas europeus, que no ano passado teriam alcançado 59 bilhões de euros.
“Os subsídios causam superprodução, o que atrai terras agrícolas de qualidade inferior para a produção ativa. Áreas que poderiam ter sido usadas para parques, florestas, pastagens e pântanos ficam restritas ao uso agrícola. Por que a Danone não cobra a implantação de uma lei para que todo agricultor europeu tenha também um Código Florestal igual ao nosso?”, questiona. No Brasil, os produtores têm de preservar entre 20% e 80% da propriedade com cobertura nativa, uma exigência legal sem paralelos nos concorrentes.
Ministério da Agricultura sai em defesa da soja brasileira
As declarações do dirigente da empresa francesa geraram um ambiente com contornos de crise e levaram o Ministério da Agricultura (Mapa) a se posicionar, por meio de nota oficial. Em relação ao EUDR, o ministério afirmou que o Brasil “considera as normas arbitrárias, unilaterais e punitivas”, por “desconsiderarem particularidades dos países produtores e impor exigências com impactos significativos sobre os custos e a participação de pequenos produtores no mercado europeu”.
O Mapa destacou que o Brasil conta com uma das legislações ambientais mais rigorosas do mundo, apoiada por um sistema de comando e controle eficiente e respaldado por uma complexa estrutura de monitoramento e fiscalização. “Esse sistema tem permitido ao país combater o desmatamento ilegal com políticas públicas que abrangem o Cerrado, a Amazônia e outras regiões sensíveis, assegurando que a produção agrícola seja feita de maneira responsável e sustentável”, diz a nota.
Para atender as preocupações dos mercados consumidores europeus, o ministério lembra que foram apresentadas à União Europeia propostas de modelos eletrônicos que contemplem as etapas iniciais do EUDR, demonstrando compromisso com uma produção rastreável e transparente.
Nota do Mapa destaca avanços ambientais e sociais acima de outros países
A nota sobe de tom ao afirmar que a posição do Brasil “é firme quanto a não aceitar regulamentações que ignorem nossos avanços ambientais e sociais, ao impor restrições desproporcionais a produtos brasileiros”. Os números da agropecuária brasileira, segundo o Mapa, têm sido comparados com demais países em fóruns internacionais, e demonstram “um descolamento positivo em termos de ganhos de produtividade e redução de impactos negativos”.
“O Brasil está pronto para colaborar, mas exige ser tratado com a mesma justiça e equilíbrio que pautam as relações comerciais internacionais devendo ser rechaçadas posturas intempestivas e descabidas como anunciadas por empresas europeias”, termina a nota do governo.
Mesmo sendo a principal cultura agrícola nacional, a área plantada de soja ocupa menos de 4% do território brasileiro, e somente 0,7% do bioma Amazônia. Em contrapartida, o grão responde por 16% de todas as exportações brasileiras, com US$ 53,2 bilhões em vendas e 101,8 milhões de toneladas exportadas. É o principal item de exportação de 11 estados da federação. “O que a Danone fez foi uma generalização extremamente perigosa, divulgando que não há uma única fazenda sustentável no Brasil. Todas são destruidoras do meio ambiente”, alerta o ex-ministro Antônio Cabrera.
Ex-ministro da Agricultura prega boicote à Danone
Essa sanção comercial da Danone, se copiada por outros players, traria um grave impacto social no Brasil, visto que mais de 73% dos estabelecimentos agropecuários produtores de soja no país têm menos de 50 hectares.
“Ou o setor se posiciona de forma enérgica contra a Danone, ou estaremos nos sujeitando a uma enxurrada de outras empresas nessa linha populista”, argumenta Cabrera. O discurso adotado até aqui, de apenas “mostrar a sustentabilidade brasileira”, não estaria funcionando.
Empresário e entusiasta dos valores liberais no comércio, Cabrera aponta que numa economia de mercado “não é o diretor financeiro da Danone que assume o controle”, mas as donas de casa e os consumidores. Nos últimos anos a paciência dos agricultores brasileiros teria sido levada ao limite, diante dos constantes ataques.
“Um homem morre quando se recusa a defender o que é certo. A verdade é que a Danone tomou uma decisão difamatória e terá que arcar com as consequências”, assegura. Citando o economista austríaco Joseph Schumpeter – “o capitalismo é julgado perante juízes que têm a sentença de morte nos bolsos” – Cabrera diz que a Danone chamou para si um boicote: “Vamos mexer nos bolsos de nossos detratores. Diga não aos produtos da Danone na sua próxima ida ao supermercado”.
Em nota, Danone do Brasil se distancia de posicionamento da matriz europeia
Contatada pela Gazeta do Povo, a Danone Brasil enviou uma nota reafirmando que “a soja brasileira é um insumo essencial na cadeia de fornecimento da companhia no Brasil”. Assinada pelo diretor-geral Tiago Santos e pelo vice-presidente de Assuntos Jurídicos e Corporativos da Danone no país, Camilo Wittica, a nota afirma que “a informação veiculada não procede”. Não esclarece, contudo, se o desmentido é apenas sobre as compras de soja no Brasil, ou se envolve também as palavras do diretor europeu.
Nota oficial da Danone Brasil sobre Soja
A Danone está há mais de 50 anos no Brasil e investe anualmente em ações que priorizam o apoio e o desenvolvimento de grandes a pequenos produtores locais, incentivando práticas mais sustentáveis em todos os elos da nossa cadeia de fornecimento.
Podemos confirmar que a informação veiculada não procede. A Danone continua comprando soja brasileira em conformidade com as regulamentações locais e internacionais.
A soja brasileira é um insumo essencial na cadeia de fornecimento da companhia no Brasil e continua sendo utilizada, sendo a aquisição da maior parte desse volume intermediada pela Central de Compras da Danone, incluindo processos que verificam sua origem de áreas não desmatadas e rastreabilidade.
Atenciosamente,
Tiago Santos (GM da Danone Brasil) e Camilo Wittica (VP de Assuntos Jurídicos e Corporativos da Danone Brasil)
Por Marcos Tosi/Gazeta do Povo.