Para destinar corretamente uma profusão de resíduos gerados no campo e na indústria, e com isso também ampliar receitas, a cadeia de carne tem se estruturado de maneira a estimular a chamada “economia circular”.
“Trata-se da adoção de valores que são demandados pela sociedade nos dias de hoje e que devem permanecer nos planos de negócio de agora em diante. Na prática, significa conceber e encaixar novos módulos produtivos dentro do negócio inicial, a fim de aproveitar os coprodutos. É uma tomada reformulação que acaba conferindo resiliência aos produtores e às indústrias, em função de diversificação de mercados”, afirma Aldo Ometto, professor coordenador de inovação e líder da área de economia circular do CEPID Bridge, da USP.
A união entre setores de pesquisa e a nova visão de gestão de algumas indústrias tem levado à descoberta de novas possibilidades. Na cadeia de carnes, a indústria tem se estruturado para definir novos negócios a partir dos – até então – resíduos.
A JBS, gigante mundial do setor de proteínas, abraçou há 20 anos o conceito de reaproveitamento de resíduos. Segundo relatório de sustentabilidade da companhia, hoje 99% dos materiais de cada bovino processado são aproveitados. Em aves e suínos o percentual é de 95%.
Para isso, a empresa criou em 2009 a JBS Novos Negócios, empresa responsável pelo desenvolvimento de projetos de economia circular. “Os negócios são tratados como unidades independentes, que devem ser autossustentáveis e obter resultados financeiros positivos, mas o foco número um das atividades na Novos Negócios é achar uma destinação para cada resíduo gerado na companhia. Para nós, o retorno ambiental que gera é maior do que o valor em receita”, pontua Nelson Dalcanale, presidente da JBS Novos Negócios.
Na prática, foram criadas diversas empresas para atuação em setores específicos. A Genu-in, produz 12 mil toneladas de colágeno e gelatina por ano, desenvolvidos a partir de peptídeos de colágeno de alto desempenho obtidos a partir do couro bovino. A Campo Forte produz fertilizantes eficientes e sustentáveis feitos a partir de resíduos orgânicos.
A Biopower é uma das maiores produtoras de biodiesel do país, tendo como matéria-prima os resíduos orgânicos gerados pelo processamento de bovinos. A JBS Couros produz couros nos estágios wet blue, semi e acabado para os segmentos automotivo, moveleiro, de calçados, artefatos, entre outros. Esses são alguns exemplos dentro de um universo maior de iniciativas da companhia.
Há oito anos, a BRF também criou uma divisão para atender a mercados estratégicos, a partir do desenvolvimento de produtos de maior valor agregado produzidos com resíduos. A BRF Ingredients oferece globalmente produtos como proteínas hidrolisadas e uma linha completa de farinhas e óleos para aquacultura, suinocultura e pet food.
De acordo com a empresa, o papel dessa divisão da companhia é transformar 100% dos coprodutos gerados no abate de aves e suínos — como ossos, vísceras, penas, gordura e sangue — em ingredientes de alto valor agregado para diversos mercados.
“A BRF Ingredients opera em escala global, com presença em 10 países, e atuação nos principais mercados de nutrição animal, saúde humana, nutrição vegetal e ingredientes alimentícios. A unidade processa anualmente cerca de 1,6 milhão de toneladas de matéria-prima composta por coprodutos frescos e seguros. No Brasil, são 31 unidades de produção, distribuídas por sete estados”, afirma Marcel Sacco, vice-presidente de Marketing e Novos negócios da BRF
No setor de ingredientes alimentícios, a empresa fornece aromas naturais de carne, proteínas de soja e farinhas de empanamento. Em nutrição animal, oferece proteínas hidrolisadas, farinhas e óleos voltados para aquicultura, suinocultura e pet food. Na saúde humana, atua com insumos essenciais como heparina e válvulas cardíacas de origem suína, fundamentais para medicamentos e próteses.
A Minerva Foods também adotou o modelo de criação de empresas especializadas em diferentes ramos de negócios para ganhar mercados a partir dos resíduos. A Minerva Biodiesel utiliza o sebo bovino com fonte de energia renovável. A Minerva Casings utiliza as vísceras na produção de invólucros para a indústria de alimentos embutidos.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_afe5c125c3bb42f0b5ae633b58923923/internal_photos/bs/2025/e/I/KeQopjQ7Gf79PTXhf53g/fachada-minerva-foods-mirassol-doeste.jpeg)
Já a Minerva Leather produz e comercializa couro para as indústrias têxtil, calçadista e automobilística. E por fim, resíduos sólidos de origem animal, como ossos e outros componentes não comestíveis, são destinados à Minerva Ingredientes, que comercializa produtos para as indústrias de cosméticos e pet food.
Além das iniciativas relacionadas à indústria diretamente, a Minerva também mantém um projeto para o reaproveitamento dos uniformes de trabalhadores das unidades industriais. Os uniformes antigos são destinados a Retalhar, uma Empresa B certificada, que recicla resíduos têxteis, evitando que tecidos descartados acabem em aterros sanitários ou sejam incinerados.
A parceria consiste na doação das peças para a criação de cobertores, que foram comprados pela Companhia e doados para a casa acolhedora Vovô Antônio, em Barretos (SP), no inverno de 2024, totalizando a aquisição de 100 peças. Desde a implementação da iniciativa, mais de 1.254 peças foram coletadas, totalizando um volume de 322,80 kg.
“Essa cultura do reaproveitamento faz parte do setor há bastante tempo, mas se intensificou nos últimos anos devido a criação de iniciativas mais estruturadas e a adoção de novas tecnologias para melhor aproveitamento destes resíduos, além de uma comunicação mais incisiva sobre os projetos que as empresas têm desenvolvido. Cada subproduto carrega um potencial de transformação e de geração de valor”, avalia Marta Giannichi, Diretora Global de Sustentabilidade da Minerva Foods
Na operação de bovinos da Marfrig, a circularidade é aplicada visando 100% de aproveitamento da matéria-prima. Após a retirada da carne destinada ao consumo humano, todas as demais partes dos animais são processadas e direcionadas a diferentes mercados e cadeias produtivas.
O couro é comercializado para as indústrias automobilística, moveleira, calçadista e de moda. Vísceras, gordura, cartilagens e ossos são transformados em ingredientes utilizados por setores como os de cosméticos, farmacêutico, fertilizantes e rações. O sebo é destinado à produção de biodiesel e utilizado como insumo em produtos de higiene e limpeza.
Já a farinha de carne e ossos é vendida para empresas que atuam na fabricação de rações para piscicultura, animais de estimação e granjeiros. As tripas bovinas passam por um processo de tratamento e calibração, sendo comercializadas tanto no mercado interno quanto em países importadores.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_afe5c125c3bb42f0b5ae633b58923923/internal_photos/bs/2022/C/i/zrHdF8S92jQYRgRfvJ1g/2019-05-23-photo-2019-05-23-16-42-57.jpg)
Para Aldo Ometto, os exemplos citados na reportagem evidenciam que a economia circular é um processo de inovação sistêmica, possível a partir da conexão de fluxos, informações e pessoas, principalmente uma nova mentalidade para os negócios.
Para o professor e diretor do Núcleo de Sustentabilidade da Fundação Dom Cabral, Heiko Hosomi Spitzeck, o grande desafio e levar esses bons exemplos aos pequenos e médios negócios do agro. “Sem dúvida, uma regulamentação mais moderna e incentivos financeiros ainda podem estimular muito a adoção de economia circular no Brasil, assim como a disseminação do conhecimento e troca de experiências positivas nesse sentido”, diz.
Por Maria Emília Zampieri.