Uma decisão da Justiça do Tocantins determinou a troca do administrador judicial na recuperação judicial da Fazenda Consentini, do empresário João Batista Consentini Filho e duas de suas empresas, Agropecuária Consentini e Centro de Distribuição Consentini. Ela é considerada a maior reestruturação de produtor rural do país pelo tamanho da dívida, estimada em R$ 1,2 bilhão.
A troca de administradores judiciais ainda é uma medida de exceção, mesmo com o aumento das recuperações judiciais no país. As reestruturações no agronegócio atingiram novo recorde, segundo dados divulgados na segunda-feira pela Serasa Experian. Foram 525 solicitações no segundo trimestre deste ano, alta de quase 32% ante o mesmo período do ano passado.
No processo da Consentini, a troca faz com que o processo basicamente seja reiniciado. Isso porque também houve mudança de juiz e dos advogados da devedora. O atual magistrado, Gerson Fernandes Azevedo, da 1ª Vara Cível, Falências e Recuperações Judiciais de Gurupi, justificou a substituição do administrador judicial pela “complexidade do caso”, que “exige um profissional com maior experiência e estrutura”. A decisão veio após reiterados pedidos de credores, sobretudo bancos, até por petição conjunta.
O antigo administrador, Wilmar Ribeiro Filho, nunca havia exercido a função. Ele tinha remuneração de R$ 56,8 milhões, o equivalente a 4,5% do passivo. O próprio site do escritório, criado só após a nomeação, indica que ele cuidou apenas dessa reestruturação. Ele foi nomeado pelo antigo juiz do caso, Adriano Murelli, afastado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (TJTO) por ter supostamente favorecido partes em ações judiciais.
Classificação errada
O antigo administrador foi acusado de classificar de forma errada parte da dívida da empresa, submetendo à recuperação débitos garantidos por alienação fiduciária. Eles deveriam ficar de fora do processo, sem sofrer aos deságios do plano de reestruturação, como prevê a lei falimentar (Lei nº 11.101, de 2005) e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A classificação já foi enviada de forma equivocada pelos antigos advogados de Consentini, na petição inicial. Esses contratos representam mais de R$ 700 milhões, o que reduziria o passivo concursal em mais de 50%. “Esvaziaria substancialmente a recuperação”, diz Milena Meyknecht, sócia-conselheira do escritório /asbz, que representa credor financeiro com exposição de R$ 7 milhões.
Credores também alegam erro na declaração de essencialidade dos bens, o que blinda o patrimônio indevidamente. Há ainda a acusação de falta de documentação obrigatória, como a inscrição de produtor rural, e as exigidas pelo artigo 51 da lei.
Nove meses após o pedido e deferimento da recuperação judicial, em dezembro de 2024, os devedores não apresentaram todos os demonstrativos contábeis (DREs), nem a inscrição do cartório de todos os imóveis onde atuam. O produtor rural teria atividade em 22 fazendas, em 19 municípios do Tocantins, mas não enviou a documentação de 17. Quanto aos DREs, só mandou o de 2023, e não dos últimos três anos, como determina a lei.
A ausência foi reconhecida em relatório pela atual administração judicial, feita pelo escritório Brizola e Japur, nomeado pelo novo juiz. Segundo eles, “não compromete a marcha processual”. Eles apuram alegações do antigo administrador de que a empresa teria vendido R$ 2,7 milhões em ativos sem nota fiscal, assim como ter deixado de incluir suposto sócio de João Batista Consentini Filho. O ex-administrador pediu a falência da empresa, mas Brizola e Japur não vê elementos suficientes para tal medida no momento.
O novo juiz do caso afirma, na decisão, que as críticas dos credores a Wilmar “são justificáveis”. Houve “confusão acerca da forma de processamento das impugnações de créditos, os canais de comunicação e a publicidade das informações relativas ao processo, a denotar de certa forma uma atecnia sobre o tema”, diz.
Segundo o magistrado, após sete meses no cargo, Wilmar “não conseguiu inserir-se no funcionamento das empresas nem estabelecer um vínculo suficiente para ter conhecimento real das atividades e negócios”. “Não se trata de destituição ou punição, mas meramente a substituição do auxiliar por acreditar que a complexidade do feito exige um profissional com maior experiência e estrutura”, afirma.
Depois da mudança de juiz e de administrador, os devedores, que pediram justiça gratuita, trocaram de advogados e contrataram o TWK e a assessoria jurídica e financeira Alvarez & Marsal. Segundo o TWK, a documentação faltante será regularizada em breve (processo nº 0016246-89.2024.8.27.2722).
Recomeço
José Paulo Dorneles Japur: novos atores devem acalmar os credores e dar um novo contexto para a recuperação — Foto: Divulgação
Com as trocas, a recuperação judicial basicamente começa do zero. “Os novos atores devem dar uma acalmada nos credores e dar um novo contexto para a recuperação”, diz o administrador judicial, José Paulo Japur. Ele irá refazer a análise dos créditos e já verificou os 500 bens listados. Identificou 320 ativos como essenciais e 74 como não essenciais. Outros 137 não foram encontrados ou o valor seria irrisório.
Sobre a inscrição de produtor rural, Japur afirma que o empresário só tinha o registro para armazenagem de grãos. “Mas isso foi regularizado”, diz Japur. De acordo com ele, as terras não estão com plantio no momento, pois é época de preparação do solo. “Hoje, João Consentini está com dificuldade para aportar capital para o fazer o plantio, mas já está em tratativas com investidores.”
Para Milena Meyknecht, do /asbz, a falta de documento seria hipótese de extinção da recuperação judicial. “São documentos obrigatórios para qualquer recuperação”, diz. Ela também se preocupa com a possível prorrogação indevida do stay period. “Os recuperandos não podem ser beneficiados além do limite legal, porque eles que deram causa nessa bagunça”, acrescenta. Com a reforma da lei de insolvência, em 2020, só é permitida a prorrogação uma vez, mas ela teme que as recuperandas peçam a extensão da proteção no futuro.
Segundo Cybelle Guedes Campos, sócia do Moraes Jr. Advogados, podem ocorrer equívocos na classificação de créditos, mas são pontuais. “Colocar créditos garantidos por alienação fiduciária que são plenamente excluídos da recuperação, por determinação do artigo 49, parágrafo 3º, é um erro muito grotesco e mostra falta de experiência e desconhecimento da própria lei”, afirma.
Livia Gavioli, sócia da Ativos Administração Judicial, diz que essa previsão legal serve para proteger o mercado de crédito. “Serve para dar segurança ao mercado e para que não se aumente o custo do crédito”, afirma. “Na alienação fiduciária, se transfere a propriedade. Portanto, aquele bem não é mais da empresa, é do banco, mas ela permanece com o uso daquele ativo até que a dívida seja cumprida.”
Cybelle também diz que o Judiciário já não admite grãos como bens essenciais, apesar de isso ser relativizado em alguns casos. “Eventual essencialidade deve ser muito bem demonstrada com documentos de que aquele bem é essencial para a empresa se manter de pé”, afirma ela, citando decisão do STJ (REsp 1991989).
Camila Crespi, do Luchesi Advogados, diz que discussões sobre essencialidade de bens sempre aparecem em recuperações do agronegócio e não há jurisprudência clara sobre o assunto. “É bem dividido”, afirma. A inclusão de rastreadores nos ativos, sugerido por credores e já feito pelo novo administrador judicial, acrescenta, é uma medida positiva. “É um ponto favorável para contrabalancear os interesses do devedor e dos credores, para que os bens sejam rastreados pelo juízo.”
O produtor rural diz, nos autos, que a reestruturação se justifica pela crise financeira do setor agropecuário, com queda nos preços da soja e do milho, estiagem e o patamar elevado do preço dos insumos agrícolas. A Fazenda Consentini tem 45 mil hectares, maior que o município de Curitiba e quase três vezes a área de Natal.
Procurados pelo Valor, Wilmar Ribeiro Filho e o juiz Adriano Murelli não deram retorno até o fechamento da edição.
Por Globo Rural e Valor.