A auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre operações de crédito rural subsidiado entre 2021 e 2024 expôs um nó que há anos se insinuava no campo: a inconsistência cadastral. Ao cruzar o Sicor (Banco Central) com bases ambientais, trabalhistas e fundiárias, a área técnica identificou 155 mil operações com indícios de irregularidades somando R$ 29,7 bilhões, quase um em cada nove contratos analisados, com R$ 1 em cada R$ 4 subsidiados associado a alguma falha. O raio-X inclui financiamentos ligados a florestas públicas não destinadas, CARs suspensos ou cancelados, áreas embargadas por desmatamento, sobreposições com unidades de conservação, terras indígenas e territórios quilombolas.
No coração desse diagnóstico está o Cadastro Ambiental Rural (CAR), transformado na peça-chave do “conheça seu cliente” do agro. Como o CAR é autodeclaratório e, em muitos casos, ainda não validado, ele se tornou tanto porta de entrada quanto ponto de fragilidade do sistema. Quando o CAR está suspenso, cancelado ou sobreposto a áreas protegidas, o risco jurídico e reputacional do crédito explode: garantias perdem lastro, o rastreamento socioambiental falha e o subsídio público pode irrigar passivos ambientais. A mensagem da auditoria é direta: sem CAR saneado e validado, não há compliance robusto possível.
As repercussões são imediatas. O TCU determinou ao Banco Central correção de operações vigentes e aprimoramento do cruzamento automatizado de dados, com possibilidade de sanções a agentes financeiros que ignorem as normas socioambientais. Para o produtor, isso pode significar reanálise de contratos, exigência de regularização do CAR, vencimento antecipado e suspensão de desembolsos. Para o Tesouro, o risco é fiscal e político: subsídios mal alocados pressionam o Plano Safra e a accountability do gasto público. A promessa do Mapa de tornar obrigatório, já em 2025/2026, o uso de monitoramento por satélite integrado ao CAR e a outros cadastros tende a elevar a régua de concessão.
No médio prazo, o sistema caminha para um “crédito com lastro cadastral”: validação do CAR pelos Estados, integração em tempo quase real com Incra, Ibama, ICMBio, Funai e bases trabalhistas, e trilhas de auditoria que sustentem due diligence bancária e de cadeias (inclusive exportações). Bancos deverão reforçar políticas ESG, modelar risco por bioma e exigir evidências de regularidade antes e durante o ciclo do financiamento. Cartórios, registradores e serviços geoespaciais ganham protagonismo na verificação de dominialidade e nas correções de sobreposição; produtores com bom histórico e CAR validado tendem a acessar crédito mais barato, enquanto áreas cinzentas enfrentarão restrição ou custo maior.
O próximo movimento depende do plenário do TCU e da capacidade de coordenação federativa. Há uma janela para transformar o CAR de ponto fraco em espinha dorsal do crédito rural sustentável: saneamento massivo, validação acelerada, transparência de status e interoperabilidade com monitoramento orbital. Sem isso, o risco é duplo: exclusão financeira de quem produz corretamente por burocracia mal resolvida e perpetuação de nichos de irregularidade que contaminam o subsídio público. Com isso, abre-se caminho para um Plano Safra mais previsível, um agro financiável e uma política de crédito que realmente premie quem está em conformidade com a lei e com o território.
Por ISSN 3086-0415, edição de Luiz Ugeda.