Como registros administrativos extrajudiciais, muitas vezes unilaterais e sem contraditório, têm afetado fazendeiros, investidores e proprietários produtivos, exigindo uma atuação jurídica estratégica e especializada para proteção do patrimônio.
Um novo fantasma paira sobre os produtores rurais nos últimos anos, mas que nada tem a ver com os típicos problemas encontrados no campo. O vilão agora não é uma nova praga, mudança climática ou variação genética de alguma planta, mas o sistema burocrático e a unilateralidade de ações que afetam a propriedade de fazendeiros e investidores. Um caminho que, buscando uma resposta para problemas históricos e que não tem como culpado o agronegócio, acaba afetando uma cadeia produtiva que ajuda a alimentar e sustentar o país.
O inimigo da vez, que tem tirado o sono de produtores por todo o país, é a averbação irregular de terras indígenas, em processos que não permitem o contraditório e a ampla defesa, que não cabem recursos e que atrapalham o desenvolvimento sustentável do país, acabando com empregos, com a produção e com o sustento de várias famílias.
A averbação não tem efeito direito de expulsar o proprietário de suas terras, mas isso não diminui as consequências trágicas que essa ação pode ter na propriedade rural e, principalmente, para o produtor, visto que a averbação qualifica um espaço de terra como sobreposta ou relacionada a terras indígenas, sejam elas em estudos ou já determinadas pela FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).
Cabe ressaltar nesse módulo introdutório que estamos falando de um processo unilateral e sem chances de defesa ao produtor, não uma crítica a possibilidade de averbação e demarcações de terras indígenas de fato e de direito. Separar essas noções é fundamental para que se garanta, ao mesmo tempo, um respeito aos povos originários, mas também uma segurança jurídica e um respaldo ao produtor rural, com respeito as leis e as suas terras honestamente conquistadas.
- Panorama Atual das Propriedades Rurais no Brasil
É necessário entender a dimensão do agronegócio no país e seu impacto em todas áreas sociais e econômicas para mensurar a importância desse debate. É comum falar que o agro sustenta e alimenta o Brasil, uma fala que vem da cultura popular, mas se torna facilmente comprovada quando analisamos os dados referentes a sua participação na economia nacional.
O último levantamento da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) e do Cepea (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada), da Esalq-USP, realizado no ano de 2024, aponta que 23,5% do PIB (Produto Interno Bruto) é oriundo do agronegócio, com um crescimento de quase 0.5% comparado ao ano de 2023. Esse dado revela a importância do produtor rural para a economia e sustento da nação.
Cabe ressaltar também outro aspecto importante da economia rural, que é a geração de empregos de forma direta, com os trabalhadores que atuam efetivamente na propriedade rural, e indireta, com o manuseio, transportes e vendas de produtos oriundos da produção agrária. Segundo dados coletados e publicados no Boletim Técnico do Mercado de Trabalho do Agronegócio Brasileiro, produzido pela CNA e pelo Cepea, com base em pesquisas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estátistica), 28,5 milhões de brasileiros trabalham com o agronegócio, quase 27% dos trabalhadores empregados no Brasil na mesma época.
Outro dado importante para trazer nesse momento é que, quando falamos em agronegócio, pensa-se primeiramente e exclusivamente no grande proprietário de terras, mas mais de 2.5 milhões de propriedades contam apenas com 10 hectares, segundo dados do IBGE, consideradas como pequenas propriedades, auxiliando no sustento de milhões de famílias com a produção rural.
Nesse contexto, destacada a importância do agro negócio para o país e para a população, com a geração de riquezas e empregos, voltamos aos ataques as suas propriedades, feito de forma parcial e sem espaço para questionamentos. Aumentam os confrontos por terras no interior do país, com muitos trabalhadores migrando para cidades pelo medo que impera em locais mais afastados, além da insegurança jurídica causada por essas ações.
- A Função Social da Propriedade e o Direito Constitucional à Posse e ao Uso Produtivo
Entrando mais profundamente no campo do Direito, principalmente no que se refere a Constituição Federal de 1988, nota-se a preocupação especial dos legisladores originários, aqueles que assinaram a Carta Magna do país, em proteger o agronegócio e, principalmente, o produtor rural no que se refere a suas terras e aos seus usos, limitando qualquer intenção possessória de terceiros para situações definidas em lei.
Definir o que é direito de propriedade e a sua função social é objeto de estudo de muitos doutrinadores, como é o caso de José Afonso da Silva, em seu livro Curso de Direito Constitucional de 2005. Nessa obra, considerada referência para o estudo e o entendimento da Constituição Federal, o célebre autor refere-se ao direito de propriedade como vinculada a sua função social, deixando de ser um direito individual e perpétuo, entretanto essas limitações a esse direito devem existir somente em justa causa com os parâmetros constitucionais garantidos. Para entender até onde esses limites da propriedade alcançam é importante desenvolver o conceito de função social da propriedade.
A propriedade atenderá sua função social, diz o art 5º, XXIII, para a propriedade em geral. Essa disposição bastava para que toda forma de propriedade fosse intrinsecamente permeada daquele princípio constitucional, mas a Constituição não se limitou a isso. Reafirmou a instituição da propriedade privada e sua função social como princípios da ordem econômica (art. 170, II e III) relativizando assim seu significado, como vimos. Além disso, inscreveu o princípio da função social da propriedade, com conteúdo definido em relação as propriedades urbana e rural, com sanções para o caso de não ser observado (art. 182, 184 e 186). (SILVA, p. 281. 2005)
Não se pode desvincular o uso da função social da propriedade e suas garantias a ordem econômica, conforme explicado acima pelo autor, portanto, ao garantir o uso de suas terras para o desenvolvimento do agronegócio, gerando riquezas e empregos ao país, o produtor rural segue à risca aquilo que desejou o legislador originário, garantindo que suas terras estão funcionando para o crescimento do país.
Buscando uma solução para problemas de propriedade, principalmente rural, mas ao mesmo tempo dando garantias ao produtor que investe em sua propriedade, os constituintes deixaram claro na carta magna que a propriedade privada deve ser protegida quando ela tem sua função social exercida, como explica Silva (2005). No mesmo caminho, o ministro Gilmar Mendes e o professor Paulo Gustavo Monet Branco, em seu Curso de Direito Constitucional, apontam a constitucionalidade da propriedade privada em relação a sua função no país.
A garantia constitucional da propriedade assegura uma proteção das posições privadas já configuradas, bem como dos direitos a serem eventualmente constituídos. Garante-se, outrossim, a propriedade enquanto instituto jurídico, obrigando o legislador a promulgar complexo normativo que assegure a existência, a funcionalidade, a utilidade privada desse direito. (BRANCO, MENDES, p. 496, 2012)
Voltando a Silva (2005), cabe ressaltar que a violabilidade de uma propriedade que atende as funções sociais tem uma série de normas que devem ser seguidas para que tal efeito ocorra, como a necessidade e utilidade pública, entretanto essa ação só poderá ocorrer com uma justa indenização em dinheiro para os proprietários. Essa situação vai em desencontro com ações que visam macular esse princípio constitucional por situações que não estão expressamente positivadas na constituição.
Conclui-se, sobre esse tema, que aquele produtor rural que exerce, em sua propriedade, a função social da mesma, movimentando a economia e gerando riquezas ao país, tem seus direitos garantidos por princípios invioláveis da Constituição, não podendo ter seus interesses ameaçados por decisões arbitrárias, unilaterais e que não seguem com o entendimento dos legisladores, da doutrina e da própria Suprema Corte.
- Demarcação Indígena: O Rito Legal e Seus Limites
Seguindo a estrutura, é importante entender também o que significa a demarcação indígena e quais os seus efeitos na propriedade privada. Cabe notar que esse mecanismo jurídico é legal e tem um contexto histórico e social que deve ser levado em conta nessa análise, visando atender funções constitucionais de preservação dos povos originários. Entretanto o foco desse artigo está nas irregularidades dessa ação quando ela ocorre fora dos ritos, de forma unilateral e que atrapalham o desenvolvimento econômico e atingem o princípio da propriedade privada.
A regulamentação para demarcações indígenas está no decreto 1.775/96 e determina as regras e prazos para essa ação, com regras rígidas sobre demarcações e buscando um formalismo processual, ou seja, buscando oportunizar a todos afetados uma participação, acompanhamento e defesa durante essa ação. Quando não seguida essas regras, torna-se nula a demarcação, pois seu formato tem forma definida por lei.
O início desse processo é baseado em estudos de antropólogos de qualificação reconhecida, como aponta o Art. 2º do referido decreto, visando dar qualidade e veracidade a demanda. Nota-se a intenção de colocar reconhecimento público no texto do decreto, visando evitar que qualquer profissional, podendo ter um olhar enviesado por razões pessoais ou políticas, possa fundamentar uma demarcação de terras. A intenção do legislador em garantir que o processo seja feito com base científica está nos parágrafos adjacentes a esse artigo, visto que aponta para a necessidade de grupo técnico especializado, tanto do órgão federal de assistência ao indício quanto de grupos federais ou estaduais. A ampla defesa e o contraditório está garantido nesse mesmo decreto, com a possibilidade de manifestação de estados, munícipios e demais interessados.
A partir do início do procedimento até noventa dias após a publicação do resumo do relatório em Diário Oficial, é facultado aos Estados e Municípios onde for localizada a área sob demarcação e demais interessados se manifestar, apresentando à FUNAI razões instruídas com provas para pleitear indenização ou demonstrar vícios totais ou parciais do relatório, podendo juntar títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, testemunhas, mapas, fotografias e demais documentos pertinentes.
Nos sessenta dias seguintes ao fim do prazo acima mencionado, a FUNAI deverá encaminhar o respectivo procedimento ao Ministro de Estado de Justiça, em conjunto com parecer relativo às razões e provas apresentadas. (COLARES, 2023, p.10)
Esse espaço é garantido por lei e deve ser respeitado, tornando nulo todo o processo que não respeitar o contraditório. Osmar Serraglio (2020), ex-ministro da Justiça, questiona os limites desse decreto. “O segundo diz com a injustiça reversa. O índio foi sacrificado e agora se aceita fazer justiça sacrificando o agricultor” (SERRAGLIO, 2010). Nesse artigo, o ex-ministro expõem algumas incoerências que acontecem com o produtor rural.
A sociedade deve, sim, reparar as injustiças que praticou contra os indígenas. Quer devolver aos índios suas terras? Que o faça. Basta que as desaproprie, para em seguida doá-las. Não é assim que acontece com as terras para a reforma agrária? Por que não há conflito quando a terra de um particular é destinada aos sem-terra? O governo desapropria, paga ao dono da terra e destina à implementação de assentamentos. Toda demarcação atinge particulares com títulos registrados porque, até então, não havia definição dos limites da futura terra indígena. Títulos que a União ou os Estados conferiram. Há situações em que o governo federal implantou reforma agrária, titulou para os sem-terra e, depois de anos, simplesmente mandou que de lá se retirassem porque a área passara a ser terra indígena. E sem direito a um centavo.
É só indenizar quem tem justo título e boa-fé. Há nesse sentido uma PEC da senadora Simone Tebet, aprovada no Senado, mas que dormita na Câmara. (SERRAGLIO, 2010)
Esse espaço é garantido por lei e deve ser respeitado, tornando nulo todo o processo que não respeitar o contraditório. Osmar Serraglio (2020), ex-ministro da Justiça, questiona os limites desse decreto. “O segundo diz com a injustiça reversa. O índio foi sacrificado e agora se aceita fazer justiça sacrificando o agricultor” (SERRAGLIO, 2010). Nesse artigo, o ex-ministro expõem algumas incoerências que acontecem com o produtor rural.
Essa questão vem sendo debatida frequentemente e já foi parar no Supremo Tribunal Federal, com a decisão do STF de rejeitar o Marco Temporal (que previa as terras ocupadas 1988 aos indígenas), mas também que a FUNAI e o presidente não possuem discricionariedade plena, portanto tem suas decisões vinculadas e explicadas pela lei e pelos estudos necessários previstos no decreto 1.775/96.
Existe uma separação entre a Mera Reivindicação Administrativa e a Demarcação Formal e seus efeitos sobre o produtor rural e sua propriedade. A primeira se dá pela formação de alegações, sem estudos conclusivos, sobre a posso indígena sobre uma propriedade. Essa situação cria insegurança jurídica ao terreno questionado, visto que a terra do produtor perde valor pela possibilidade de perda e possíveis questionamentos sobre a propriedade. Já a Demarcação Formal é o procedimento quando previsto por leis e seguido todos os ritos necessários, finalizado o tempo de questionamentos e homologado pela justiça.
E, criminosamente, quando reagem, passa-se a informação de que são grileiros. Numa audiência, assisti a um agricultor dizer, chorando, ao presidente da República que tinha 75 anos e que em sua terra estava enterrado seu bisavô, a família tudo lá empregara — e que agora estava na rua, sem nada, porque passara a ser terra indígena. São essas pessoas — e, como disse, são milhares pelo Brasil — que se revoltam e então surgem os conflitos que são noticiados. Alguém já leu alguma notícia de conflito com os indígenas em que a situação do agricultor é explicitada? (SERRAGLIO, 2020)
Voltamos ao Serraglio (2010) para entender a necessidade de um formalismo e uma defesa concreta do produtor rural contra demarcações fora dos padrões e do formalismo que a lei exige, sem uma justa possibilidade de defesa e contraditório e sem reposição dos possíveis danos ocasionados pela situação. Essa situação de demarcação, ou a mera reivindicação administrativa, com manifestações e tentativas de guiar a opinião pública, tem efeitos negativos na vida do produtor rural.
A indicação de um processo demarcatório ou a sua finalização ocasionam diversos problemas imediatos e futuros ao proprietário de terras rurais, como o bloqueio de alienação desse terreno por parte de cartórios, quando esses percebem a existência de uma demarcação indígena. Outro problema que atrapalhar a vida do produtor rural é a dificuldade de acesso a financiamento e a crédito rural, visto que os bancos aumentam o risco de perda devido as dúvidas sobre a propriedade do terreno.
Já falamos sobre a desvalorização ocasionada por esses questionamentos e pela insegurança jurídica que vem junto com o processo demarcatório, mas também é necessário ressaltar o risco de violência física, como ocupações e conflitos com indígenas. Essas situações aumentam as tensões entre os proprietários rurais e os povos originários, ocasionando conflitos físicos entre os dois grupos. Essa possibilidade ajuda a diminuir a valoração da propriedade e afastar recursos da propriedade rural.
- As indenizações prometidas: Um caminho longo e incerto
A existência de um pagamento indenizatório para o proprietário rural em caso de demarcação costuma ser um argumento favorável para aqueles que defendem o direito possessório indígena de todas as terras possíveis, entretanto essa lógica tem difícil aplicabilidade no mundo real. Uma série de fatores culminam numa complexa demora para acesso a essa verba de indenização por parte daqueles que tiveram seus patrimônios atingidos, ou até extintos, por esse processo unilateral.
O primeiro problema se dá pela concretização do direito indenizatório, visto que o mesmo só será possível após o trânsito em julgado do processo demarcatório. Significa dizer que até a homologação presidencial não há como se falar em qualquer tipo de restituição monetária pelos danos e prejuízos causados pela demarcação. Isso ocorre mesmo que a terrena esteja inviabilizada para vendas, transferências ou qualquer outra restrição.
Esse período em que o produtor tem suas posses atingidas, seja de forma conclusiva ou não, deixa-o a mercê da sorte, visto que não há um prazo concreto de conclusão desse processo indenizatório e a sua impossibilidade de acesso completo à sua propriedade, como a possibilidade de venda, cria uma fragilidade econômica e jurídica para as suas economias.
Para alguns, com base no entendimento de artigos da Constituição de 88, essas demarcações não deveriam nem gerar indenização, por ser uso de terra indígena, devendo o produtor rural ter que comprovar boa fé para receber pelas construções, como explicado no trecho a seguir:
A CRFB/88 determina ainda que os atos que envolvam a ocupação, posse e exploração das terras indígenas são nulos e não geram efeitos jurídicos, salvo em casos de relevante interesse público da União definidos por lei complementar. No caso, a nulidade desses atos não dá direito a indenização, exceto quanto às benfeitorias construídas de boa-fé, nos termos da lei (§6º). Acrescenta ainda que o aproveitamento de recursos hídricos e minerais nessas terras depende de autorização do Congresso Nacional, com consulta prévia às comunidades afetadas, garantindo-lhes participação nos resultados da exploração (§3º). (BRAGA, MARIN. 2025. p.8)
Além da possiblidade de não receber a verba indenizatória, os contemplados poderão ser pagos com títulos precatórios, com base na Constituição Federal. Esses títulos podem demorar mais de 10 anos para o pagamento real, impossibilitando que esse produtor possa adquirir novas terras e que possa iniciar novamente sua atividade econômica. Recentemente a AGU enviou o Plano Transitório para Regularização das Terras Indígenas em Litígio Judicial, em que sugere o pagamento por precatório das indenizações, cobrindo apenas 60% do valor da propriedade.
- Conclusão
Essa análise sobre a problemática da demarcação de terras indígenas sem a ampla defesa e o contraditório, atacando os direitos de produtores rurais pelo país inteiros esbarram em uma série de situações que atentam contra a capacidade produtiva e econômica do setor que mais contribui para a criação de empregos e riquezas no país.
Conforme vimos no texto, coube ao proprietário das terras um papel de aceitação nesse rito, sem força para questionar os desmandos e sem direitos garantidos. A própria valoração de seu terreno não tem uma base crível e pode ocasionar prejuízos enormes, além da desvalorização patrimonial por causa da especulação, da falta de investimentos devido a instabilidade possessória e os demais problemas ocasionados pela insegurança jurídica.
Mais que importante, torna-se necessário uma assessoria jurídica especializada e experiente nesse tipo de caso, que apoie o produtor rural nas diversas fases e particularidades do processo demarcatório, levando o interesse do produtor perante as garantias constitucionais de propriedade privada e de função social da propriedade. Combater as decisões unilaterais contra o produtor rural é auxiliar a construção de um país mais rico e justo a todos.
Por Gabriel Funichello, advogado e fundador do Funichello Advogados, escritório especializado em Direito Civil e Imobiliário.